Sobre um Ladrão de Machado

Um homem perdeu seu machado, e desconfiou que o filho do vizinho o tivesse roubado. Começou a espiona-lo, e tudo parecia indicar que suas desconfianças estavam corretas: o rapaz andava como um ladrão de machado; sorria como um ladrão de machado, e seu modo de falar parecia ser hipócrita como o de um ladrão de machado. Todos os seus movimentos tendiam a disfarçar sua culpa. Mas, um dia, aconteceu deste homem, que perdeu o machado, cavar um lugar qualquer no vale e topar com o seu instrumento de trabalho perdido em um canto, perto do lugar onde sempre fazia seu serviço. No dia seguinte, ele olhou novamente o filho do vizinho, e concluiu que todos os seus movimentos, todo o seu ser, nada tinham haver com os de um ladrão de machado.

do Livro de Liezi



COMENTÁRIOS

Liezi teria vivido no século IV a.C., tendo sido, tradicionalmente, mestre de Zhuangzi. Teria herdado de Laozi o gosto por versos profundos, mas ao mesmo tempo iniciou a transmissão dos saberes taoístas pela via dos contos e apanágios, que tiveram seu ápice com o discípulo famoso.Isso, claro, se ele tiver mesmo existido, tendo em vista que sua vida é tão misteriosa quanto a de Laozi. Para o filosofar, porém, isso não é tão importante.

A parábola do Ladrão de Machado exemplifica a questão do preconceito e das construções irreais, que fomentamos sobre as coisas e sobre os outros, quando nos vemos em momentos de angustia ou de irreflexão. Isso só ocorreria por causa das exigências que a sociedade nos lança todos os dias: precisamos trabalhar, às vezes sem saber porque ou como. Não é importante se o serviço gera prazer ou satisfação: sua execução está vinculada a um fim, e não ao ato em si. Este fim é a sobrevivência. Mas a concepção ideológica da subsistência, como uma meta individualista, não seria a geradora justamente dos males humanos? Senão vejamos: porque o lenhador achava que alguém o havia roubado? Em princípio, porque seu machado só poderia ter sumido assim. Alguém queria levar vantagem sobre ele, e, em última análise, sobre a vida. Ele desconfia do filho do vizinho: vê nele toda a sua insegurança manifesta, a quase comprovação do delito que põe, o outro, como culpado de seu fracasso. E no final, descobre que o engano era seu mesmo.

A percepção de Liezi é vasta neste aspecto: ela realiza a contraposição entre o individual e o coletivo, noção importante na sociedade chinesa, intensamente gregária. A idéia de obrigação social incide sempre com muita força no espaço individual, e uma forma de escapismo é atribuir os problemas íntimos às condições externas adversas.

Sabemos que, por muitas vezes, a força da ideologia e da cultura macera o sentimento humano numa determinada fôrma, que o adapta, à força, as convenções do meio (Liezi, 2). Mas a parábola de Liezi nos mostra duas coisas importantes: primeira, de que não podemos viver sempre em função da sociedade, já que ela não é capaz de gerar sempre respostas para nossos problemas. Na verdade, vivemos das regras, mas quando fracassamos, muitas das vezes essas mesmas convenções nos abandonam (Liezi, 8). Em segundo lugar, a sociedade é constituída por nós: são as pessoas que fazem as desconfianças, os conflitos, as incertezas. Se examinássemos todos os passos de nossa vida, saberíamos reconhecer, com justiça, o que fizemos de errado e o que não foi culpa nossa. Melhor ainda, talvez percebêssemos mesmo que muitas das ofensas que sofremos, e que julgamos serem decisivas na nossa formação não passam, diante de um olhar atento, de mera imaturidade e frivolidade. Dentro do olhar taoísta de Liezi, o caso do roubo do machado mostra que o ser humano ainda tem muito por fazer para viver numa sociedade harmoniosa.

Para que o Todo seja perfeito, cada um tem que fazer seu esforço individual para que a mudança ocorra. É necessário tentar compreender o caminho (Dao), senão vamos continuar nos perdendo nas ilusões materiais, nas próprias paranóias que construímos sobre o que nos cerca (Liezi, 1). Não existiria, nessa visão, um conflito entre a noção de indivíduo e coletivo: na verdade, assim como o Yin e o Yang, ambos são diferentes, mas ao mesmo tempo se completam, e um depende do outro. Assim, a cultura não pode ser nunca entendida como tábua de salvação, se não for precedida de uma reflexão moral e ética profunda e sincera, desprendida da cobiça e isenta de interesse; o que é muito difícil, na prática, mas não impossível, se levarmos em conta que cada trabalho é feito diariamente, passo após passo. Como no caso do lenhador, nenhuma floresta será derrubada no primeiro dia de esforço: é o serviço contínuo que traz o aperfeiçoamento constante e a obtenção das metas.