Sobre a Real Natureza Humana

Mêncio disse: “todos tem um coração sensível aos sofrimentos de outros. Os grandes reis do passado tiveram este coração sensível, e políticas cheias de compaixão foram adotadas. Trazer a ordem ao reino é tão fácil quanto mover um objeto na palma de sua mão, e quando você tem um coração sensível tenta sempre pôr em prática políticas de compaixão. Me deixe dar um exemplo do que eu digo, ou seja, que todos tem um coração sensível aos sofrimentos de outros: qualquer um que tenha visto, de repente, um bebê próximo de cair em um poço se sentiria alarmado e iria salva-lo. Não o faria porque quis melhorar suas relações com os pais da criança, nem porque quis adquirir uma reputação boa entre seus amigos e vizinhos, ou ainda, porque não gostou de ouvir a criança gritar. Apenas o faria por compaixão. Disto segue que qualquer um à quem falte sentimentos de comiseração, de carinho, de cortesia ou um sentido de certo e de errado, não pode ser entendido como humano.

(...) Gaozi disse: “a natureza humana é como a água correndo: quando um curso é aberto ao leste, ela flui para o leste; quando uma corrente é aberta ao oeste, flui para o oeste. A natureza humana é mais inclinada ao bem tanto para o leste quanto para o oeste”. Mêncio respondeu: “a água não tem preferência pelo leste ou pelo oeste, mas não tem uma preferência pelo cimo ou para baixo?” A bondade é na natureza humana como fluir da água para baixo. Não há nenhuma pessoa que não seja boa e nenhuma água que não flua para baixo. Espirrada, ela pode molhar sua cabeça; se forçada, pode ser trazida acima de um monte. Mas esta não é a natureza da água; são circunstâncias específicas. Embora os povos possam ser feitos para serem maus, suas naturezas não são mudadas.

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Xun Zi disse: A natureza do homem é má. Bom é o produto humano. A natureza humana é tal que os povos nascem com amor ao lucro, e se seguirem essa inclinações, eles lutarão e arrebatar-se-ão uns aos outros, e as inclinações ao dever e a produção morrerão. Eles nascem com medos e ódios. Se os seguirem, transformar-se-ão em violentos e tendenciosos, indo de contra a boa fé, que morrerá. Se forem indulgentes, a desordem da licenciosidade sexual resultará na perda dos princípios rituais e da moral. Em outras palavras, se o povo agir de acordo com a natureza humana e seus desejos, eles inevitavelmente lutarão, arrebatar-se-ão, violarão as normas e agirão com violento abandono. Conseqüentemente, somente depois de transformados por professores e por princípios rituais e morais, conforme a cultura, poderão permanecer em boa ordem. Visto por este lado, é óbvio que a natureza humana é má, e bom é o produto humano.

Extratos do Livro de Mêncio e do Livro de Xunzi



COMENTÁRIOS

Os dois grandes nomes do Confucionismo, depois do próprio Confúcio, foram Mengzi (Mêncio) e Xunzi, que desenvolveram a doutrina a partir de uma nova perspectiva interpretativa. Mêncio (IV-III a.C.) é considerado por muitos o grande idealista dessa escola, e seu texto foi adicionado ao cânon tradicional. Já Xunzi impregnou o discurso com uma forte noção racionalista, cujos desdobramentos contribuíram de forma significativa para a formação do pensamento político de sua época (III a.C.). Ambos foram quase contemporâneos, e suas propostas foram discutidas simultaneamente.

Mêncio e Xunzi inauguraram, dentro do Confucionismo, a discussão sobre a real natureza humana. Ela seria boa ou má? Confúcio não disse muito a respeito, preocupando-se mais com a questão da retificação das pessoas do que propriamente com sua natureza. Para Mêncio, no entanto, era importante explicar esta dimensão do pensamento confucionista, tendo em vista uma crítica séria que era feita aos métodos de sua escola.

A crítica pautava-se na questão da educação: se ela era fundamental para a construção da sociedade ideal e harmônica, porque tantos nobres considerados “educados” continuavam a empreender a corrupção e a degradação moral? Porque os mais ricos eram mais cobiçosos que os pobres, se muitos haviam podido estudar e, teoricamente, esclarecer-se?

A resposta de Mêncio vinha de encontro à idéia de que não havia um mal intrínseco tanto nos pobres quanto nos ricos. Ambos nasciam com espíritos bons, ou destinados ao bem, mas a atração pela fama e pelas riquezas matérias é que corrompiam o ser humano. Desde cedo ele seria estimulado a tirar proveito, a cobiçar, a roubar, a trair, se esse fosse o exemplo gerado pela sua família e pelos líderes de seu povo. A educação, portanto, seria a grande arma para esclarecer, de fato, os problemas da sociedade. Aqueles que, mesmo sendo considerados “bem educados”, continuassem a explorar e a praticar a vilania não teriam sido, para Mêncio, devidamente instruídos. A educação, em sua visão (que concordava com Confúcio) devia, acima de tudo, clamar ao exame interior do Ser. Sem isso, ela não seria mais do que um lustre intelectual, uma polidez cultural que não alteraria o caráter deformado das pessoas.

Por isso mesmo Mêncio não via, do maior nobre ao menor camponês, diferenças que os fizessem seres humanos diferentes e melhores (ou piores) uns que os outros. A separação hierárquica seria apenas uma circunstância transitória, e até discutível, que serviria somente à necessidade de organização social em torno da administração pública. Por este motivo, qualquer um que tivesse seu bom coração firme, por conseguinte, era candidato a exercer o poder, o que seria demonstrado pela vontade do céu.

Xunzi, no entanto, considerou que a perspectiva de Mêncio era por demais idealista, e por mais que o Céu prometesse catástrofes aos governantes corruptos, ainda assim o gênio humano continuava a agir, disseminando a maldade. Partindo deste princípio é que Xunzi concluiu justamente o contrário de Mêncio: a natureza humana seria má, selvagem, idêntica a natureza dos animais que se juntariam em bandos para caçar, matar e procriar. No entanto, este mesmo ser humano precisou estabelecer limites que assegurassem sua existência, sendo capaz de gerar uma idéia de lei e justiça que intermediaria seus conflitos com o outro. Xunzi entendia ser isso um Saber social (Cultura), ou seja, um sistema de reprodução da sociedade que disciplinava seu modo de vida, vinculada, fundamentalmente, a questão da educação, que seria a transmissão desta estrutura entre gerações. Vemos aí, novamente, o problema dos estudos aparecendo como um fator primordial na ótica confucionista. Xunzi era pessimista, mas não descrente do ser humano: pelo contrário, acreditava que mesmo esse ser, de natureza vil, era capaz de articular um modo de vida que respeitasse os limites alheios. Logo, se a China de sua época vivia uma crise, era porque realmente as pessoas não estavam sendo bem educadas: e isso permitia que seus instintos primitivos aflorassem em toda a sua força. O ser humano tinha todo o potencial de ser bom, mas disso dependia que toda a sociedade exercesse uma pressão constante sobre si própria e sobre os governantes para regular suas ações, e disseminar a prática do bem e da cultura. Eram necessários princípios rígidos na avaliação do cotidiano. E assim sendo, valendo-se de suas forças, a humanidade independeria, mesmo do Céu, para sobreviver.

A questão da natureza humana foi tão importante, para a China Antiga, quanto é para nossa sociedade hoje. As idéias de Xunzi influenciaram vários pensadores políticos, como Han Fei (que veremos adiante), cujas propostas radicais guardavam bastante do pessimismo de seu mentor. Já Mêncio conclamava as pessoas a repensarem seus medos e desconfianças, diante da ação da bondade; e a reagir quando a maldade prevalecesse (Mengzi IV:3). Como nos situamos diante dessas análises do espírito humano? Quantas vezes estabelecemos preconceitos e estereótipos em relação a outras culturas e povos por não sabermos sua mentalidade? O Ocidente esperou até Hobbes e Locke (século XVII) para chegar a uma discussão semelhante, e ainda assim, em nenhuma parte do mundo chegou-se à um consenso. Parece-nos aqui que a opção por uma interpretação sobre a real natureza humana dependeu, sempre, das perspectivas mentais daqueles que a propuseram, fossem elas positivas, negativas, ou mesmo neutras. No entanto, a maneira de encarar esta dúvida, no ponto de vista chinês, não se encontrava na avaliação metafísica do problema, mas sim, na sua resolução pragmática. E para os confucionistas, o sempre recorrente discurso da educação se fazia necessário.

Isso nos coloca em outro nível de questionamento: pode uma construção humana (a educação, em si) modificar o espírito de um povo, ou mesmo de apenas uma pessoa só? Ou cada um já nasceria com uma tendência, com uma pré-disposição, que a educação apenas lapidaria, afirmaria ou destruiria? Na dúvida, os mesmos confucionistas optaram pelo dogma do ensino: afinal, ainda que existisse (ou não) um destino traçado para cada ser, cumpria à sociedade instruí-los sobre suas capacidades, seus limites e direitos. Diante disso, somente a consciência poderia determinar, realmente, o caminho a ser tomado pelo indivíduo, fosse qual fosse sua índole natural.