Sobre o Pensar Chinês Antigo

O pensador indiano R. Panikkar (1988) observou muito bem que existe atualmente, no campo historiográfico e filosófico, uma hierarquia estabelecida entre as ciências ocidentais e o pensamento oriental. O filtro pelo qual nós realizamos o trabalho de investigação das civilizações asiáticas é, justamente, o da nossa cultura, o que nos induz naturalmente a distorção dos aspectos mais banais do outro. Apesar da idéia defendida pelo antropólogo C. Geertz (1982) - que com certa razão afirma que somos produto de uma cultura (e por isso temos uma melhor possibilidade de entendermos e expressarmos a nós mesmos, mas não aos outros) - acreditamos que não é impossível lançar, sobre as civilizações orientais, um olhar naturalmente interessado e simpático - o que se torna uma grande vantagem para o pesquisador estrangeiro perceber algo em uma cultura que os próprios nativos não conseguem atentar. Há uma discussão séria em torno dessas possibilidades de estudo sobre a alteridade, cada qual com suas qualidades e defeitos que não nos cabe aqui aprofundar. O fato é que podemos nos utilizar das experiências de cada uma para compreender, com melhor proveito, o pensamento oriental. No entanto, ainda temos a questão desses métodos serem em essência “ocidentais”, o que não facilita a interpretação de certos conceitos presentes nas culturas asiáticas.

Uma dessas tendências, por exemplo, é aquela na qual procuramos fazer traduções aproximadas de certos termos e princípios do pensamento asiático que julgamos serem convenientemente iguais ou parecidos com os nossos (como no caso dos primeiros tradutores ocidentais cristãos que buscaram incessantemente o termo chinês mais próximo possível da noção de Deus). Isso ocasiona o problema de encontrarmos contradições, a todo tempo, nos sistemas de pensamento oriental. Tal engano tem mesmo que ocorrer, tendo em vista que as conceituações utilizadas são próprias da nossa cultura, que formam um sistema diferente dos de China e Índia. Logo, quando fazemos esta aproximação, tendemos a enxergar os outros como errados, atrasados, estranhos, exóticos, etc. Não pensamos que transpomos, aos mesmos, aspectos de nossa própria realidade, e como ela não é aplicável em toda sua amplitude a diversidade de sociedades existentes, a tendência é a incompreensão e/ou a formulação de modelos bastante falhos (como a idéia de que a cultura chinesa deriva da indiana, por exemplo). Aliás, não paramos para pensar que nem mesmo nossa ciência tem conceituações definidas sobre certos assuntos, o que nos leva a crer que, muitas vezes, partimos das idéias do senso comum e do preconceito para investigarmos a cultura asiática, o que só pode terminar em catástrofe.

Por outro lado, é muito difícil compreendermos em toda extensão a mentalidade oriental, e mesmo nos valendo das isenções saudáveis (não preconceituosas) que possamos ter, não fomos, em geral, criados e formados nessas culturas diferentes da nossa. Daí que, quando tentamos realizar um processo de “conversão” ao modus do outro, em geral incorremos num outro caminho desastroso, que nos leva ao anacronismo (quando não, ao ridículo), utilizando-nos de todos os estereótipos positivos que possuímos sobre os mesmos para tal mister, o que não nos deixa escapar, por conseguinte, do preconceito. Hoje em dia, porém, há uma tendência muito original de fundir este pensamento antigo com as concepções modernas de ciências humanas tal como são propostas no Ocidente.

Em meio a essas perspectivas conflitantes e complicadas, resta-nos ainda perguntar se tudo, no Oriente, é realmente diferente, ou se não podemos fazer aproximações seguras dessas culturas com a nossa. Ora, acreditamos ser totalmente plausível fazer inferências análogas, se isso for realizado com certo cuidado e respeito.

Temos que entender que a História e a Filosofia asiáticas tem suas tradições próprias, que partem de um conceitual em muitos pontos diferentes do nosso. Os sistemas orientais insistem, em sua maioria, na existência de valores e concepções que teriam origem numa razão universalista, pautada no espírito humano (Chan, 1978). Todas as sociedades no mundo teriam a possibilidade de traduzir este princípio - mas, devido à uma série de fatores, cada um destes grupos formularia sua própria proposta de interpretação, o que acabaria por gerar o atrito e o conflito de idéias. Isso decorreria da incapacidade empírica do ser humano, enquanto ente material, de apreender a realidade do todo nesta instância de sua existência.

Esta proposta de cunho metafísico não exige, no entanto, um engajamento religioso ou espiritual: apenas atenta ao fato de que todos somos seres humanos, e por isso mesmo temos a capacidade de descobrir as mesmas coisas.

Achamos este princípio bastante válido para iniciarmos a discussão sobre o pensamento chinês. Podemos, dentro destas proposições, fazermos uma crítica objetiva e histórica das idéias de cada um desses pensadores, sem torná-los melhores ou piores do que os nossos.

Além disso, o fato destes sistemas de pensamento serem diferentes não significa, porém, que não trabalhem com problemas semelhantes aos encontrados no Ocidente. Isso nos remeterá, na apresentação dos textos, a possibilidade de aplicação destas idéias no contexto moderno - ainda que como propostas apenas filosóficas.

Busquemos entender o pensamento chinês como um irmão de nossa tradição greco-romana, que possui suas próprias opiniões sobre os mesmos assuntos, em função de uma capacidade de formação e leitura alternativa à nossa. Apenas assim é que teremos a capacidade de analisar em que medida estas propostas podem ser válidas ou não tanto para nós quanto para eles. E, em última instância, de que forma poderemos empreender um mergulho sobre a cultura do outro e retiramos dela uma série de instrumentais e conceitos que nos permitam fazer uma saudável autocrítica sobre nossa própria sociedade, sobre os caminhos que temos buscado para resolver os problemas atuais?

Base Histórica

Quase todos os textos que apresentaremos datam do período entre VI - III a.C., momento de intensa produção intelectual da Antiga China. Era o período final de existência da Dinastia Zhou, que agonizava debaixo das guerras constantes promovidas pelos Estados Combatentes (as datas tradicionais situam esta época em 481-221 a.C.) e, diante de um contexto social e político complexo, os chineses resolveram empreender uma revisão profunda de seus valores e costumes, procurando encontrar fórmulas que resgatassem seu antigo passado ideal ou, que pudessem reorganizar sua estrutura de vida (Kaltenmark, 1982 e Granet, 1997).

Este processo, no entanto, era mais antigo: desde o século VI a.C., Confúcio e Laozi já atentavam a degradação que se instalava no seio das comunidades, nos hábitos e no pensamento. Desde então, formaram-se várias escolas em torno de mestres destacados, cujas propostas apresentavam-se como soluções para a época de crise.

Durante a Dinastia Han, no entanto, uma classificação genérica, feita com fins didáticos e teóricos, foi realizada, separando cada uma dessas correntes segundo uma linha de direcionamento específica. Elas foram organizadas em nove sistemas principais, que seriam: a escola dos letrados (de Confúcio), taoístas, moístas, legistas, nominalistas (ou “sofistas”), cosmogonitas, políticos, agrícolas e ecléticos (Jopert, 1979:90). Abordaremos as principais delas.

Se partirmos da noção de que todos estes autores compartilhavam da mesma perplexidade diante da corrupção e violência que afligiam a sociedade (e quem sabe, talvez, ainda atinjam toda a humanidade), observamos, porém, que suas propostas construíram-se de forma substancialmente diferente. E a História do pensamento chinês não poderia ser, também, encerrada neste período: como afirma Chan (1978), é nesta época que se inaugura uma seqüência, dentro da China, de elaboração e renovação das escolas filosóficas que continuariam a se desenvolver, sem grandes interrupções, até o século XX, quando finalmente o Marxismo surge, revolucionando a vida do país. No entanto, estes antigos sistemas continuariam a sobreviver em outros lugares, como em Taiwan, Japão, Coréia, etc. onde a influência da Cultura chinesa de fez sentir de forma significativa.