O Verso do Dao

O caminho que pode ser seguido não é o Caminho perfeito.

O nome que pode ser dito não é o nome do Eterno.

No princípio está o que não tem denominação.

O que tem nome é a Mãe de todas as coisas.

Para que possamos observar seus segredos, devemos permanecer sem desejos.

Se formos até ela com desejos, só vislumbraremos sua forma externa, a casca em torno da essência.

Estes dois estados existem para sempre unidos. Diferentes apenas pelo nome, são idênticos, juntos, entrelaçados.

São os mistérios, mistérios além dos mistérios.

[São] O portal, que conduz a tudo aquilo que é sutil e maravilhoso, esconderijo de todas as essências.

Verso 1 do Daodejing, o Tratado do Caminho e da Virtude de Laozi



COMENTÁRIO

O misterioso pensador Lao zi teria vivido em época contemporânea a de Confúcio (VI a.C.), mas sua existência continua sendo um motivo de controvérsia. Acreditamos que não é sumamente importante discutir agora este ponto, em virtude de duas questões: primeiro, que o nosso objetivo aqui é analisar a proposta contida no texto; texto esse que, numa segunda assertiva, já influenciava o pensamento chinês no século IV a.C. através de autores como Liezi e Zhuangzi. Assim sendo, o fato de ter havido, ou não, alguém chamado Laozi, já não era importante desde o século V a.C., o que se dirá agora. Empregaremos, assim, a figura do suposto autor para introduzir o discurso taoísta, sem que haja aqui uma afirmação sobre sua condição real de existência.

Em meio ao caos que se instalava no século VI a.C., a proposta de Laozi baseou-se num distanciamento claro das decadentes instituições políticas dos Zhou. Empreender um retorno à natureza primordial do ser, essa sim seria a busca ideal da salvação. Os tempos antigos representavam para os taoístas uma época de paz, de desapego, que fora obtido graças à harmonização natural dos seres com o meio. No intuito de fazer prevalecer esta paz, porém, apareceram os sábios, que instituíram leis, promulgaram regras, e lançaram a desconfiança entre as pessoas, ensejando os desejos egoístas de sobrevivência e acúmulo material.

Por causa disso, a sociedade perdeu o Dao (Tao), o caminho, conceito esse já existente na mentalidade chinesa que os taoístas (ou daoístas - optamos pelo primeiro termo, mais comum) iriam desenvolver ao máximo. O Dao não poderia, em essência, ser explicado. Parece tratar-se de uma fórmula de harmonia com a natureza, onde o Ser descobriria sua posição atuante no ciclo cósmico. Isso exigia que a pessoa comum, portanto, se desprendesse das coisas mundanas que atavam-na, no círculo vicioso das convenções sociais, para descobrir, no seu íntimo, o ritmo das relações existentes entre seu corpo, seu espírito e a natureza.

Por isso mesmo, a descrição lingüística do Dao não era possível, para os taoístas, por se tratar de uma experiência transcendente, desligada das sensações que governam os seres comuns. A matéria e o espírito seriam, na verdade, desdobramentos de uma única fonte primordial, inominável, que provinha da entidade geradora do cosmo, a Mãe-natureza (Daodejing, 6 e 52). Partindo dela, estabelece-se a dicotomia constituinte da matéria, os princípios opostos, o Yin e o Yang. E da fusão de ambos nasce o Três, o filho, o manancial das Dez mil Coisas (expressão chinesa para o universo) (Daodejing, 42). Para se acessar, por conseguinte, essa realidade, o ser precisaria buscar dentro de seu próprio espírito a noção de equilíbrio e interação que se chamaria Dao. Ele não poderia dispensar a matéria, do qual faz parte: mas pode tentar apreende-la sem desejo, sem noção de posse, o que permite então a livre expressão das propriedades das coisas (Daodejing, 48, 49 e 72). Esta isenção do desejo, e o livre fluir do conhecimento, é que davam ensejo ao conceito da Não - ação (wu wei).

Esta clivagem taoísta é bastante interessante: quantas vezes não deixamos de enxergar as coisas porque nelas projetamos nossas ânsias e desejos? É exatamente por isso que Laozi propunha uma aproximação isenta, sem o que só seríamos capazes de observar a forma externa das mesmas, e nelas continuaríamos a sobrepor nossas concepções próprias de mundo que não seriam nada mais, nada menos, do que erros de leitura da realidade, propostas pela Cultura.

De fato, esta mesma Cultura aparecia aí, para os taoístas, como um filtro deformador da realidade natural: uma construção até necessária, para que o homem pudesse interagir com o meio. Mas, a partir do momento que a mesma se tornasse um sistema de Domínio sobre a natureza, então ela começa a se degradar e corromper, pois passa a ser uma construção irreal (e ideal) sobre a verdade cósmica. Derivariam disso os conflitos entre os países, os povos, as famílias, cada qual porque nenhum desse seres percebe que os atributos do cosmo estão presentes, por igual, em cada um deles.

Mas essa realidade natural do Ser seria de fácil acesso? Na verdade sim, e não. Ela dependeria do esforço individual de cada um, o que a torna um caminho tortuoso e complicado, mas que ao mesmo tempo está aberto diante de nós, já que fazemos parte desta natureza e não podemos dela nos separar. Este seria o Portal do conhecimento, dos mistérios, presente na entrada do Dao (Daodejing, 34 e 70).

Estas concepções taoístas conclamavam as pessoas ao estudo íntimo e a meditação profunda do papel do ser humano no seu meio. Laozi foi um tanto hermético nos seus discursos sobre o resgate da harmonia primordial, mas ao mesmo tempo foi original e autêntico, quando propôs que a real liberdade do Ser não poderia ser atingida pela prática de uma cultura que trazia dentro de si o cerne da degradação. Toda e qualquer construção humana, que se distancia de uma base natural, tenderia a gerar perturbação, já que ela provocaria o surgimento de novas ânsias, duvidas, conflitos e perigos, que jogariam os seres uns contra os outros. A abordagem do Caminho deveria ser feita, com segurança, através da flexibilidade do pensamento, da ação contida e do coração aberto aos movimentos do mundo.

O primeiro verso do Daodejing nos diz respeito, portanto, a necessidade que os seres humanos teriam de reencontrar sua posição na natureza cósmica. Seria um engano pensarmos que somos donos de algo (ou de nossa própria vida, ou do meio), já que esta consciência ideológica deriva de uma noção maior de Cultura, mas que não esclarece, em si, o fato de que todos os seres nascem e morrem, e apenas natureza continua a existir. Assim sendo, nós pertencemos à natureza, e não o contrário. Laozi pensava, com isso, em chamar as pessoas à construção de uma sociedade mais harmônica, baseada na compreensão deste princípio, que nos induz a agir não de forma selvagem, mas que nos traz a consciência da transitoriedade das coisas, e que por isso mesmo, nos força à rever nossos desejos e angústias como sentimentos vãos, numa existência que não exige nada disso para assegurar nossa sobrevivência.

A proposta de Laozi nos faz pensar, em termos modernos, na questão da responsabilidade individual sobre o mundo, sobre as das ditas “comunidades primitvas” e mesmo sobre a questão ecológica. Em que medida nós assumimos um exame íntimo de nossas vidas e não criamos para elas mais necessidades do que realmente precisaríamos? A cultura, por muitas vezes, não nos induz ao excesso desmedido, criando anseios sobre coisas que seriam totalmente dispensáveis em nossas vidas, mediante um exame mais atento? Quando observamos as “comunidades primitivas”, que durante um bom tempo conseguiram estabelecer um padrão de vida bastante significativo, pautado exclusivamente na harmonia com a natureza e o meio, podemos realmente assegurar que a evolução material seria o único caminho de desenvolvimento possível para a sociedade? E ainda, as construções tecnológicas, que se propõe a serem reprodutoras da vida humana, muitas vezes não ameaçam o meio ambiente, pondo em perigo, por conseguinte, a própria existência das sociedades mundiais?

Na antiguidade chinesa, o taoísmo terminou por se destacar como um caminho exotérico de compreensão da realidade natural, pondo-o num patamar religioso acessível somente pela meditação e, por vezes, pela alquimia (Palmer, 1993 e Eliade, 1978). Numa perspectiva moderna, isso seria considerar que o taoísmo tenderia a ser um movimento contra a evolução técnica da humanidade, privilegiando o distanciamento e o abandono das necessidades materiais. Essa idéia é uma constante na interpretação de vários sistemas de pensamento oriental, mas não podemos assegurar que os taoístas, em bloco, pensassem assim. Na verdade, talvez seu intuito fosse criticar uma cultura que destruía seus próprios elementos em função de interesses particulares e egoísticos, afastando o ser da sua natureza inicial (Daodejing, 65). O retiro, aí, não despende que a humanidade parasse sua caminhada: mas que, apenas, revisse seus passos. Se assim for, a descoberta dos mistérios que envolvem o caminho não seria, nada mais, nada menos, do que a criação de uma sociedade onde seres conscientes fossem capazes de assegurar a vida comum através de uma relação mais equânime e adaptada à realidade do meio. O caminho, portanto, seria se deixar conduzir por este movimento natural e constante, sem conflitos, sem atritos, sem desperdícios (Ibidem, 63, 73). Eis uma mensagem significativa, que Liezi e Zhuangzi trabalhariam para tornar mais acessível ao público através de suas parábolas, que veremos a seguir.