O Fabulista do Dao

Não Absoluto

Se um homem dorme em um lugar úmido, resfria-se e morre. Mas e as enguias? Viver em cima de uma árvore é difícil, e esgota os nervos de qualquer um. Mas que me dizes dos macacos? Entre o homem, a enguia e o macaco, quem habita o lugar certo, absolutamente? Os seres humanos alimentam-se de carne, o gamo de erva, as centopéias de cobras, as corujas e corvos de ratos. Desses quatro, qual é o gosto certo, absolutamente? O macaco se une a macaca, o gamo à corça; as enguias unem-se aos peixes, enquanto os homens admiram Mao Qiang e Li Chin à vista dos quais os peixes mergulhariam, horrorizados, na profundidade das águas, as aves voariam alto no Céu e os gamos fugiriam correndo. Quem dirá, contudo, qual é o correto padrão de beleza? Na minha opinião, o padrão da virtude humana, e do positivo e negativo, é tão obscuro que é impossível realmente saber qual seja.

A Escolha de Zhuang zi

Zhuang zi estava pescando no rio Pu, quando o príncipe de Zhu mandou dois altos funcionários convidá-lo para assumir o cargo de administrador do Estado Zhu.

Zhuang zi continuou pescando e, indiferente, disse: "Ouvi falar que em Zhu há uma tartaruga sagrada que morreu há cerca de três mil anos. E que o príncipe guarda cuidadosamente essa tartaruga em um cofre no altar de seus ancestrais. Ora, para essa tartaruga seria melhor estar morta e ter os seus restos venerados, ou estar viva e arrastando a sua cauda na lama?".

"Seria melhor estar viva e arrastando a sua cauda na lama", responderam os dois altos funcionários.

"Ide embora!", gritou Zhuang zi. "Eu também prefiro arrastar a minha cauda na lama".

Zhuang zi à Morte

Quando Zhuang zi estava para morrer, os seus discípulos manifestaram a vontade de lhe fazerem um esplêndido funeral. Mas Zhuang zi disse: “Com o céu e a terra por meu féretro; com o Sol, a Lua e as estrelas como ornamentos fúnebres, e com toda a criação para me levar ao túmulo - os preparativos para o meu funeral já não estão prontos?”.

"Tememos" argumentaram os discípulos "que os abutres devorem o corpo do senhor" Ao que Zhuang zi replicou: "Acima do chão serei alimento dos abutres; debaixo do chão serei alimento dos vermes e das formigas. Por que tirar de uns para dar aos outros?".

Extratos do Livro de Zhuangzi



COMENTÁRIOS

Com Zhuangzi, a escola taoísta completou sua tríade, tal como a dos confucionistas. Mas este incrível contador de histórias, que tornou o Dao acessível aos leigos, deixou uma mensagem humanística profunda, que nos surpreende pela sua sensibilidade e agudeza.

Vejamos a primeira fábula: quem pode saber o que é melhor, em absoluto? Quantas vezes alguém pode nos indicar um caminho achando que é o melhor, desconhecendo por completo nossa individualidade? Zhuangzi não nega o valor da experiência humana, mas contesta sua abrangência e especificidade. Em geral, o que vivemos são construções ideológicas e culturais que são alheias aos impositivos de nosso espírito (Zhuangzi, 2), mas então, como podemos manifesta-los em nossa sociedade? Quem pode saber, realmente, o que é melhor pra nós, senão nós mesmos? Mas Zhuangzi não era, também, um defensor do egoísmo e da imaturidade. Para ele, as experiências humanas deveriam ser a base sobre qual nós observaríamos a vacuidade de certas coisas, e não uma muralha, construída pelas decepções, que fechariam nossa alma ao mundo.

Em geral, o chamado “conhecimento da vida” seria, na visão deste pensador, nada mais do que um conjunto de amarguras e rancores que induzem as pessoas à sempre lutarem pelo que é transitório, o que dá prestígio, mas que não é a definitiva realidade do ser. As sensações não deveriam servir para que todos desenvolvessem uma visão egoísta e pessimista do mundo: elas teriam por fundamento, na verdade, a possibilidade de fazer com que as pessoas reconhecessem as diferenças que existem entre os Seres da natureza. E isto não faria com que houvesse, necessariamente, uma hierarquia cósmica que determinasse a posição de cada um no universo; cada qual tem, de fato, seu lugar nos ciclos naturais, mas cada um com sua importância, ninguém melhor ou pior do que o outro.

É por isso que Zhuangzi recusara as honrarias de um bom cargo, no segundo conto: porque se deixar prender em obrigações matérias e transitórias, cujas preocupações cotidianas e monótonas nada tem haver com a realidade última do mundo (ibidem, 17)? Tinha o que precisava para seu sustento, então porque querer mais? Seria comodismo? Ou a negação daquilo que muitos querem, o Poder e o Prestígio?

Como vimos antes, a força, na visão taoísta, é efêmera e rápida, em contraposição a suavidade, que é durável e sutil. Assim também seriam o Poder e o Prestígio: hoje, um homem é soberano; e amanhã, escravo de outro rei. Somente aqueles que percebessem o caminho seriam capazes de compreender que todas essas coisas passam. A fome, sim, seria uma realidade; nascer, morrer, procriar, eis o que todos fazem, do mais alto político até o mais baixo popular. Disto se concluía que todas as disputas em torno de valores, posses, bens e posições nada mais eram do que construções humanas, pois todos, enfim, precisam do mesmo básico para viver.

É por isso que Zhuangzi encerra brilhantemente sua vida retribuindo, à natureza, seu corpo (ibidem, 32). A mesma Mãe que dá, é a que tira. E, no entanto, como podemos achar que não fazemos parte dela, se somos entes perenes, já que no ciclo cósmico não há perdas, mas apenas manifestações da mesma matéria? Como podemos nos fazer mais ou menos importantes que outros, se somos feitos do mesmo princípio e se necessitamos das mesmas coisas? (ibidem, 7)

Zhuangzi é um apanágio sobre o preconceito e sobre o egoísmo. Não que Laozi e Liezi não tenham se pronunciado, e bem, sobre estas coisas, mas Zhuangzi explorou-as ao máximo, aproximando seu discurso das pessoas mais ignorantes e menos instruídas. A salvação estaria ao alcance de todos, e ela seria facilmente atingida por aqueles que conseguissem se desprender dos grilhões materialistas do mundo para perceber, com naturalidade, a presença do caminho (Dao), da existência real do Ser.

Muito nos impressiona ver que, no século IV a.C., este autor já era capaz de discutir as diferenças sociais e materiais sob uma ótima humana, isenta de preconceitos, pautada unicamente numa crítica ao mundo, e não somente à sua cultura. Se nesta época já era possível realizar tal inferência, vemos que a criação de um conceito humanístico não é privilégio de nenhuma sociedade, mas de uma “sabedoria universal”, inerente a todos os povos (se, de fato, esta sabedoria existe). Somente as construções ideológicas fomentariam um pessimismo sobre o Ser (como em Xunzi), que transparecesse no estabelecimento de códigos e leis desiguais e hierárquicas: a tendência do espírito, em si, seria reconhecer-se como igual, o que tornaria a fraternidade e o amor os únicos princípios verdadeiros do mundo.