As Instruções de Yueh

(...) Tendo assumido o cargo de supervisão de todos os funcionários, Yueh se apresentou ao rei e disse: Oh! Os reis sábios agem com obediência de acordo com a vontade do Céu. A fundação de Estados e o estabelecimento de capitais, a nomeação de soberanos, nobres, funcionários, chefes, não se destinam ao ócio e aos prazeres egoístas, mas sim ao serviço do povo. O céu é esclarecido e atencioso: que o sábio rei o tome como exemplo. Assim, não haverá ministros que não o sigam e, por conseguinte, todo o povo será bem governado.

É da boca que se origina a vergonha, são as armaduras que dão origens à guerra. As vestes importantes, e as comuns, não serão retiradas de seus baús de forma interesseira; antes de utilizar uma lança e um escudo, deve a pessoa examinar a si mesma. Se vossa majestade for prudente e conduzir assim seu governo, o povo será esclarecido e tudo será excelente. O bom e o mau governo dependem de seus auxiliares: os cargos não devem ser atribuídos aos favoritos, mas aos capazes. As dignidades devem ser concedidas às pessoas de mérito, não às de conduta indigna.

Antes de agir, cogite sobre as melhores possibilidades, e aja no momento oportuno. Preocupar-se apenas em ser bondoso é perder a noção do correto, e não empregar o poder que possui de forma correta é perder o próprio mérito das suas possíveis realizações.

Que exista preparo em todas as questões, e com isso não ocorreram calamidades. Não deves abrir as portas aos favoritos, que depois o trairão. Não se envergonhe dos seus erros, ou eles podem se tornar crimes. Permita que seu espírito se dirija as questões do bem comum, e suas atitudes serão corretas. Tanto a licenciosidade quanto o excesso devem ser banidos da execução dos rituais, o que conduz à desordem - sem isso, é difícil servir aos antepassados. (...).

Extrato do Shujing, O Tratado dos Livros



COMENTÁRIOS

Quem é o Ser superior (junzi)? É aquele que possui os atributos da força ou os da sabedoria? Em teoria, para os antigos chineses, ambas as qualificações deveriam estar presentes no ideal “rei-sábio”. O soberano isento, antes de tudo, era um exemplo de conduta para a população. Vimos, no texto anterior, a importância da suavidade e da humildade. No entanto, o pensamento chinês estabeleceu, desde cedo, uma dicotomia entre as manifestações componentes da realidade, que se constituem no Yin e no Yang (embora no Yijing ambas as noções ainda não apareçam com estes nomes). O Poder de Domar do Pequeno, em essência, era de propriedade Yin (apesar de composto, na maioria do seu corpo, por linhas Yang), pois se constituía na capacidade de uma tênue linha fraca suster a ação das linhas fortes. Chega a hora, porém, em que o governante (o exemplo do ser superior) deve se entregar ao serviço e agir com energia, dinamizando o movimento da sociedade de acordo com os ciclos da natureza. Nesse momento ele age de forma Yang, ou seja, gerando impulso, expandido sua energia benéfica e suas determinações salutares pelo governo e pela comunidade.

Como isso se corporifica no plano material? Através de uma série de determinações transparentes, comedidas, regradas, que colocam os elementos mais capazes no corpo da administração pública, onde ele pode vigiar seu trabalho e a execução de suas atribuições.

Isso não quer dizer que a China fosse um manancial de bons soberanos. Na verdade, a experiência com alguns poucos, dignos de nota, é que parecem ter imprimido no imaginário popular uma concepção acerca do que era ser um bom governante (Mozi, 4). Este ponto de vista é confirmado quando levamos em conta que foi Confúcio quem recuperou o Shujing, e, por conseguinte, sua releitura dos textos - somada as transformações que ele sofreu ao longo dos séculos - permitem-nos entrever que as idéias propostas no mesmo podem decorrer de uma série de construções ideológicas próprias, mas não de uma realidade comprovável. Por outro lado, principalmente a partir da Dinastia Han, quando o confucionismo torna-se uma doutrina oficial, tais conceitos são recuperados, o que nos permite afirmar que este ideal de bom governante, presente no Shujing, torna-se uma espécie de modelo cultural que norteou a execução dos deveres pelos monarcas (pelo menos, no campo mental, tendo em vista que muitos continuaram incorrendo em excessos).

Cabe-nos aqui discutir em que medida esta proposta, porém, não deixa de ser consistente com uma noção de ética política e moral que para nós é tão importante.

Inicialmente, podemos notar a fundamento primordial, para os chineses, de que um governo só poderia funcionar se fosse baseado na méritocracia, e não no nepotismo. Era estranho, ao senso comum, a idéia de que o filho de um nobre seria tão capaz quanto o pai apenas por sua ascendência familiar. Como indicou Confúcio, mesmo para se obterem as bênçãos de céu e a compreensão do caminho (Dao), era necessário estudar com afinco (Lunyu 3, 7 e 8). Daí o comentário de Yueh, que informa o soberano sobre a necessidade de escolher, segundo a capacidade (e não por favores) os melhores elementos para o governo. Tal concepção nos indica dois pontos fundamentais no discurso: primeiro, de que um governante só poderia assegurar sua sobrevivência e gravar seu nome no mural dos exemplos se conduzisse bem os negócios do governo. Era falsa a idéia, na mentalidade chinesa, de que a aliança e a distribuição de bens entre os aliados interesseiros asseguraria o poder de alguém: isso só daria ensejo, no fundo, à corrupção e a degradação dos valores, além da intriga e da traição. Em segundo lugar, podemos supor que o mesmo problema da degradação devia ser maior do que imaginávamos na China Antiga: em quase todos os discursos confucionistas (e no de outras escolas também) os combates à corrupção e ao nepotismo se faziam premissas básicas da reformulação social e política.

Tal ponto nos permite fazer uma inferência segura da contraposição que existia entre o ideal de ser superior, de bom soberano, e o da realidade material. Os constantes apelos ao exemplo dos governantes, feitos pelos confucionistas, comprovam que a civilização chinesa era capaz de engendrar, como qualquer outra, a idéia da corrupção e do favorecimento ilícito. No entanto, os mesmos chineses foram capazes de atentar e criticar esta condição, tendo-a como degradadora dos costumes e hábitos culturais. Assim sendo, o egoísmo humano, individualista, deixa de ser uma questão de foro íntimo para ser de amplitude pública, na medida em que prejudica os interesses comuns da sociedade.

Mais do que isso aparece, também, no breve discurso de Yueh; a necessidade de se planejar o futuro. Dependia do monarca, em concordância com os anseios do povo e com a vontade do céu, prestar sempre atenção aos momentos de agir e de construir. É daí que Mêncio irá retirar a idéia de que a vontade do céu é, praticamente, a do bem - estar popular (Mengzi, III:27). Atenção constante, diligência, responsabilidade, eis os atributos daquele que desejaria ser respeitado pelos seus nos negócios públicos: humildade, força, conhecimento e energia, eis as qualificações daqueles que são sábios. Para os chineses antigos, se os reis deveriam ser grandes seres humanos, suas capacidades, no entanto, estariam ao alcance de todos os mortais; e essa modificação íntima dos seres é que representa o sustentáculo de uma sociedade ideal e harmônica, onde todos seriam virtuosos em prol do bem comum, e não em função de si mesmos (Lunyu, 17).