As Conversações de Confúcio

O Mestre disse: estudar sem refletir é inútil; meditar sem estudar é perigoso..

O Mestre disse: (...) praticar o Ren é começar por si mesmo: querer elevar os outros tanto quanto queremos elevar-nos a nós mesmos e desejar o seu êxito tanto quanto desejamos o nosso. Acolhe em ti a idéia do que podes fazer pelos outros - eis o que te porá no caminho do Ren.

Fan Chi perguntou: o que é Ren? O mestre disse: ame a todas as pessoas.

Zigong: existe uma palavra que possa guiar nossa ação por toda a vida? O Mestre disse: não faça aos outros o que não quer que façam com você.

Do Lunyu, as Conversações de Confúcio



COMENTÁRIOS

Kung fuzi, ou Confúcio, um dos grandes sábios da antiguidade chinesa -que dispensa apresentações - foi um trabalhador incessante no resgate das tradições, tal como dos antigos mitos inspiradores. Seria difícil para nós, portanto, escolher uma passagem em especial do Lunyu (Conversações, ou Analectos), que englobasse uma parte substancial do seu pensamento. Mas talvez o que mais surpreenda, em nossa proposta de investigar as similitudes do pensamento oriental e ocidental, é a noção apresentada por ele sobre Humanismo (Ren). Nos séculos XVI-XIX, os missionários cristãos ficaram pasmos, ao constatar que seria difícil converter um povo que vivia sob a égide de uma doutrina oficial pregadora, antes de tudo, deste amor igualitário.

Por este motivo, devemos ter o confucionismo como um sistema de pensamento muito bem estruturado, pautado em valores definidos, como o próprio Ren (Humanismo), Li (Ritual), Zhong (Conduta), entre outros. Decidimos por privilegiar estes três, que vêm de encontro a nossa análise.

Iniciemos aqui, por motivos didáticos, pelo Li. Para Confúcio e seus seguidores, a questão ritual era o grande índice da civilidade humana, separando-os dos bárbaros e ignorantes (Lunyu, 13). No entanto, não havia ninguém, na mentalidade confucionista, que não pudesse se educar nos rituais e na cultura (educar-se, aliás, era a base da formação de um ser humano, sem o que ele não se diferenciaria dos outros animais) (Lunyu, 12). Os rituais, por conseguinte, eram os atos oficiais, religiosos e sociais responsáveis pela interação entre os membros da comunidade e pela sua conexão com a ordem natural e a vontade do Céu. Para este sábio, a execução do ritual era uma forma de assegurar a reprodução de uma velha estrutura de vida que havia possibilitado a existência da China de sua época (Lunyu, 10). A degradação moral e a corrupção dos costumes, bem como a apropriação indébita do poder vinham, justamente, do desconhecimento que as pessoas tinham sobre a importância dos rituais, e isso ocorria tanto pelas tendências egoísticas dos homens quanto pela sua má formação educativa.

Estudar, para Confúcio, era a base de tudo; era o que assegurava a conduta reta (Zhong) e a justiça (Yi) nos negócios públicos e para com as pessoas. Para ele, a conduta não era apenas uma forma polida de etiqueta: era um meio pelo qual as pessoas conheciam seus limites internos e externos, garantindo seu bom relacionamento com o próximo. Era também uma forma de autocontrole, que em última analise levava a criatura a perceber sua importância no mundo, deslocando-a dos interesses próprios para os interesses da comunidade. Temos uma noção muito hipócrita da etiqueta, que em nossas concepções apresenta-se como uma forma diplomática de relacionamento, muito ligada à cultura de elite. A idéia dos confucionistas ia bem além da mera formalidade: o hábito da retidão na conduta moral deveria forçar o Ser a repensar suas atitudes, atentando a seu papel social (Lunyu, 12 e 13). Assim sendo, as práticas de relacionamento não seriam uma repressão dos sentimentos, mas sim uma expressão digna e respeitosa do íntimo, que através da formalidade, seriam filtradas de forma não agressiva.

Estas idéias se originavam da concepção de Confúcio de que Ren (o Humanismo) era, de fato, a base de todo o Mundo. Mas o que é Humanismo numa visão confucionista?

É complicado traduzir este termo para nossa língua, tendo em vista que ele engloba várias idéias diferentes, mas façamos uma aproximação explicativa.

O primeiro conceito que podemos utilizar para entender este Humanismo confucionista é o do Amor. Houve uma grande deturpação em relação à proposta de distribuição do afeto entre os seres, e muitos tenderam a acreditar que Confúcio defendia que só era possível amar aqueles que também fossem civilizados, o que em breve se traduziu por “chineses”. Isso não é verdade: mesmo criticando os bárbaros do Norte por seus costumes diferentes e agressivos, Confúcio nunca estabeleceu um limite para quem poderia ou não entender o caminho (Dao) por ele proposto. A base desse Humanismo, assim como do ritual e da conduta eram, sempre, os estudos. Estudar a si próprio, estudar os outros, estudar a cultura, formando assim um arcabouço íntimo de idéias e valores: eis o mister dos autênticos confucionistas (Lunyu, 1). Assim sendo, Amar é um termo que se aproxima pela noção de sentimento afetivo recíproco, de compreensão mútua, de equilíbrio e equanimidade entre as pessoas. Isso não basta, porém, para explicar o Ren.

Devemos aqui incluir outra noção, a do Altruísmo. A ajuda desinteressada faz parte dos elementos componentes do Ren, o que permite o equilíbrio da sociedade pelo aproveitamento sadio de todos os seres. Confúcio era contra a caridade direta, que para ele só reforçava as desigualdades e a acomodação (Lunyu, 6). Era necessário empreender a educação comum, a ajuda mútua e a distribuição do trabalho para que todos pudessem viver em uma harmonia digna, justa. Uma pessoa só seria lançada ao desequilíbrio e a carência se não tivesse trabalho ou, ainda, se mesmo com trabalho, não tivesse uma educação que lhe impedisse de cometer excessos, ou que a fizesse desconhecer as regras de conduta e de ritual.

No período Han, quando da adoção do Confucionismo pelo Estado, a China passou por um período de grande renovação cultural e intelectual derivada destas propostas. No entanto, esta escola foi incrivelmente deturpada em períodos posteriores, transformando-se até numa religião, algo que Confúcio provavelmente lastimaria. O principal desvio, no entanto, foi a transformação do ritual em um separador da cultura chinesa em relação ao resto do mundo (Jopert, 1979: 92); somada a banalização do Ren, que se transformou em um conceito de afeto disperso e superficial, dirigido em termos caritativos, o confucionismo perdeu grande parte de sua potência como proposta universal para se tornar um discurso sinocentrista de civilização.

Temos que nos impressionar, no entanto, com a atualidade e a abrangência da proposição original de Confúcio. “Amar a todos”, e “não fazer ao próximo o que não quer que façam com você” são, no mínimo, afirmações tiradas de uma razão humana que deve transcender a lógica cultural. Nessa hora somos obrigados a nos perguntar se, de fato, as correntes do pensamento oriental não estariam certas, ao afirmar a importância da ascendência do espírito humano sobre certos valores e conceitos que surgem, em diferentes sociedades e contextos históricos, levando em conta que estas conclusões foram feitas tendo por base pressupostos culturais completamente diferentes. E o que dizer então da idéia de educação e comportamento? Quanto tempo levamos para concluir isso, com nossas concepções modernas sobre ciências humanas? Há que se pensar aí, realmente, numa possível universalidade do saber, patrimônio indelével da mentalidade humana que de tempos em tempos é inferida por estes grandes pensadores? Não podemos ter certeza, mas Confúcio, já no século VI a.C. foi capaz de elaborar uma proposta, em muitos aspectos invejável, para a resolução de problemas sociais que parecem atravessar a existência humana com persistência e tenacidade, sobre os quais apenas a vontade íntima seria capaz de se sobrepor.